quarta-feira, 20 de maio de 2015

O Islão - Esse grande medo

Ahmed Abbadi, investigador e secretário-geral da Liga dos Ulemas

Carolyn Kaster

O historiador Jaime Nogueira Pinto entrevistou, nas vésperas do lançamento do seu novo livro "O Islão e o Ocidente", Ahmed Abbadi, líder islâmico e secretário-geral da Liga dos Ulemas. A entrevista, publicada originalmente na Revista do Expresso, passa a estar disponível também na sua edição online.

Foi lançado na passada sexta-feira o livro do historiador Jaime Nogueira Pinto que aborda, sem preconceitos e sem clichés, o assunto do Isão e do Ocidente. Esse é mesmo o título da obra - a que se acrescenta o subtítulo A Grande Discórdia - que a editora Dom Queixou publicou e onde se pretende responder à pergunta: como é que uma religião monoteísta, que produziu uma civilização próspera, culta e tolerante, está hoje “reduzida no imaginário ocidental” a uma ideia de fanatismo e intolerância.

Foi assim que Ricardo Costa, diretor do Expresso, sugeriu o livro no Expresso Curto desta quarta-feira, onde remete o leitor para a entrevista publicada na Revista E de sábado passado e que aqui agora também se apresenta, ao investigador Ahmed Abbadi, secretário-geral da Liga dos Ulemas, feita pelo próprio Jaime Nogueira Pinto para o Expresso.

A conversa teve lugar no passado mês de abril, em Marrocos. O professor Ahmed Abbadi é doutorado em Estudos Islâmicos pela Universidade Qaddi Ayyad de Marraquexe, onde leciona Religiões Comparadas e História do Pensamento Islâmico. Integra, desde 1995, um programa de cooperação com a DePaul University de Chicago como professor de Sociologia Norte-Africana. Em 2004, foi nomeado pelo rei Mohammed VI diretor dos Negócios Islâmicos e é, desde 2006, secretário-geral da Liga dos Ulemas de Marrocos.

Professor Abbadi, acha que há uma guerra de civilizações entre o Islão e o Ocidente? É um perigo real, é um cliché? E se é um cliché, será verdadeiro ou falso?

Há pessoas a quem esta guerra beneficia, por isso deitam achas para a fogueira. Mas o princípio comum ao Cristianismo e ao Islão, ou à civilização judaico-cristã e à civilização islâmica, é o do reconhecimento mútuo. É esse o registo em que se inscreve o Corão.

Portanto, na sua opinião, haverá pessoas que ganham com a ‘guerra de civilizações’ e que por isso fazem o possível para que se instale essa visão de confronto.

Absolutamente. Estão a atear e a alimentar a fogueira, apesar de o espírito ser mais o do reconhecimento mútuo, da aproximação, da complementaridade. Há momentos históricos, como durante o califado de Córdova, em que se viveu muito esse espírito. E foi um dos períodos mais ricos da história comum das nossas civilizações. Os seres humanos, por viverem experiências diferentes e enfrentarem diversos desafios, ganham outras capacidades, que não deixam de ser complementares. Não podemos, contudo, tirar partido dessa diversidade e complementaridade se não chegarmos ao reconhecimento mútuo, se não nos reencontrarmos, se não tivermos a humildade construtiva de nos aproximarmos uns dos outros para podermos usufruir das experiências acumuladas ao longo dos séculos. Esta seria, idealmente, a natureza das coisas... Mas há um veneno, uma toxina, que é o medo, que se instala nos nossos corações e os corrói, assim como corrói as civilizações e gera reações negativas. Daí assistirmos a excessos e à legitimação desses excessos. Se, por exemplo, perguntarmos ao Ocidente as razões da colonização, dir-nos-ão que era de uma missão civilizacional que se tratava...

É como em toda a ação humana, uma mistura de idealismo, de egoísmo, de religião, de saque... É sempre uma mistura.

O facto de se encontrarem todas essas justificações vai gerar, do nosso lado, uma série de reações. E as nossas brutalidades são depois também legitimadas pela vontade de nos libertarmos, de nos descolonizarmos, de conquistarmos uma independência mais afirmativa, mais condizente com o nosso orgulho. Vão sempre encontrar-se razões para justificar as brutalidades de parte a parte. Mas acho que já é tempo de pôr em marcha um movimento de equidade e reconciliação intercivilizacional, para que possamos sarar as feridas do passado — que são recíprocas e se vão sedimentando nos respetivos subconscientes. Temos que fazer esse exorcismo, essa reconciliação; sair da tensão em que vivemos e voltar à interdependência e ao reconhecimento mútuo.

Não acha que a reconstituição desse diálogo antigo de que fala seria mais fácil entre pessoas com algum sentido da fé e do sagrado? No caso do “Charlie Hebdo”, os caricaturistas praticavam sistematicamente agressões às crenças de um grande número de pessoas, justificando-as com a liberdade de expressão aquilo a que nos EUA se chama hate crime. Faziam-no não só com os muçulmanos, mas também com os católicos. E nem todos estarão dispostos a “dar a outra face”...

Acho que nada, absolutamente nada, legitima a violência e a brutalidade. Aquilo que nos devia preocupar é o laxismo educativo, formativo e mediático... Devíamos estar atentos a estas tendências que vão crescendo, não só no Ocidente, mas também no Oriente. Começam de uma forma que pode parecer inofensiva, mas pouco a pouco avolumam-se e transformam-se numa avalancha. Por isso, em primeiro lugar, temos de aprender a estar atentos a estes fenómenos que crescem e que, se não forem detetados de início, podem gerar atos abomináveis. Gostava de sublinhar que a exclusão piora muito estas situações, favorece o crescimento destas gangrenas. Por isso, precisamos de acompanhar estes fenómenos para os podermos cortar pela raiz, para podermos intervir no momento certo, de modo a que não cheguem a desenvolver-se. O que se passou em Paris não é mais do que uma amostra do que se passa diariamente no Médio Oriente ou nos Estados Unidos ou na Ásia. De um lado e de outro. Na Birmânia, por exemplo, assistimos a uma eliminação sistemática dos muçulmanos. A mesma coisa na África Central, na Bósnia, no Kosovo... No Paquistão, na Nigéria e no Quénia vemos, ao invés, atos de violência praticados contra não-muçulmanos. E isto tem que ver com o facto de não nos conhecermos, de não conhecermos o outro, de nos faltar a noção da realidade internacional, da necessidade de vivermos juntos. A verdade é que precisamos uns dos outros para nos completarmos. A atitude de confronto só reforça o veneno do medo, a toxina do medo, que é o que temos que erradicar para podermos assegurar um futuro mais radioso.

Em novembro de 2014, contaram-se mais ou menos 5000 vítimas do terrorismo jiadista. Praticamente todas muçulmanas, na sua maioria da Nigéria ou do Médio Oriente, mas morreram também muitos cristãos. O Ocidente só quase reage quando os massacres se passam aqui à porta. Alguns media exploram uma dialética arriscada, que consiste em apresentar sempre o ‘outro religioso’ como o inimigo, o perigoso, o subdesenvolvido. Hoje, no Ocidente, a ideia que a comunicação social passa do Islão e dos muçulmanos é que são todos fanáticos, que professam uma religião que prega o ódio aos não-crentes e aos crentes de outros credos. Não penso que seja assim, julgo que os muçulmanos responsáveis por estas ações e massacres usam a religião como um instrumento de manipulação política, ao serviço de uma estratégia política e mesmo geopolítica.

Há um versículo comum na Tora e no Corão que diz: “Quem mata uma alma, mata todas as almas humanas. E quem salva uma alma salva-as a todas.” Uma alma, quer seja muçulmana, cristã, ateia ou de qualquer outra confissão, é sempre uma alma. Quem a mata, fá-lo a todas as almas da espécie humana. O que aconteceu nos últimos anos é que houve mutações. Numa primeira fase, o discurso extremista exigia e proclamava a pureza. Era um discurso que pretendia que as coisas regressassem à fonte, às origens, à tradição profética e aos textos corânicos. Depois, houve uma primeira mutação, com a Al-Qaeda, um grupo que se apropriava da voz coletiva dos muçulmanos. Os membros deste grupo autoproclamavam-se defensores das liberdades e dos direitos e afirmavam que iriam retificar todas as afrontas feitas aos muçulmanos: o colonialismo; Israel; aquilo a que chamam a “conspiração para destruir a unidade islâmica”; o haver sempre dois pesos e duas medidas; a delapidação das fortunas mineiras e petrolíferas; a humilhação nos media, nos filmes, etc.; a infiltração ocidental em termos de valores; e, por último, este cocktail ‘iraquiano-afegão-centro-africano’... Assim, nesta primeira mutação, apropriaram-se da voz coletiva dos muçulmanos, autoproclamando-se porta-vozes de toda uma civilização. Agora, assistimos a uma segunda fase: uma nova mutação que oferece um sonho a uma massa de jovens desempregados, quase analfabetos, revoltados, que se regem pelo ódio e que não estão casados. Vêm oferecer-lhes um sonho que tem duas vertentes: a primeira é um sonho de dignidade: “Tu, que não estás casado, vem comigo e eu caso-te com a mais bela e mais crente das mulheres. Tu, que não tens trabalho, vem comigo e eu ofereço-te um cargo de ministro da defesa no Daesh (Estado Islâmico). Tu, que não fizeste os teus estudos como terias desejado, vem comigo e farei de ti um dos maiores sábios do Islão. Tu, que te sentes explorado, vem comigo e farei de ti uma pedra angular deste país que é o Daesh.” É um sonho de dignidade. A outra vertente do sonho é a unidade, que responde precisamente à causa que sempre encontramos na retórica dos extremistas, quando afirmam que há uma conspiração para destruir a unidade dos muçulmanos. Então: “Vem a mim e vamos construir essa unidade. Farei de ti um dos atores principais do futuro califado. Um califado que vai estender-se de Jacarta a Tânger.” São coisas muito cativantes, e não se pode responder a um sonho com uma lengalenga. Responde-se a um sonho com outro sonho, mais forte e mais atraente. E é aqui que devia entrar a criatividade dos nossos intelectuais, pondo em marcha um movimento global de equidade e de reconciliação intercivilizacional.

Estou inteiramente de acordo. E isso é particularmente importante porque assistimos a uma espécie de render da guarda jiadista, quando a Al-Qaeda parece eclipsar-se e o Estado Islâmico, que se constrói com base na destruição de alguns países do Médio Oriente, faz a sua aparição. O Ocidente, sobretudo os EUA, contribuíram muito para este tipo de fragmentação. Agora temos um movimento com um território. Antes, se os jovens muçulmanos fanáticos quisessem juntar-se à Al-Qaeda, era mais complicado, porque era de um movimento clandestino que se tratava. Agora, basta passarem a fronteira turca, entrar na Síria, e já estão no Estado Islâmico. Como é que se pode combater aquilo que tem um lado de sonho, mas que simultaneamente faz uma propaganda extraordinária e altamente agressiva?

O ponto fulcral é hoje a instauração do estado de terror, o state of fear. O estado de medo tem um efeito anestesiante. Não conseguimos refletir nem agir como devíamos, estamos sob o efeito da anestesia do medo. Mas é uma anestesia que não dura para sempre. Uma vez passado o efeito, vai gerar reações ainda mais brutais. Aquilo que estamos a testemunhar mostra que a ferramenta informática utilizada, a ferramenta cibernética, tem um efeito de atração, um efeito fator X que faz com que aquelas grandes produções sejam visionadas e seguidas. Há milhões de cliques nessas cenas violentas e brutais, o que prova que a verdadeira arena hoje não é geográfica — não é o Iraque, a Síria ou o Curdistão; a verdadeira arena, a primordial, é a arena dos intelectos, da mente, das fibras informáticas. Por isso, é preciso preparar outras mais poderosas, mais cativantes. E isso requer muita criatividade. Há estatísticas que referem que no Médio Oriente um rapaz ou rapariga de 18 anos terá já assistido, em média, a mais de 40 mil crimes, factual ou virtualmente — nos telejornais, mas também nos filmes e videojogos. Se não nos empenharmos em criar uma cultura alternativa, mais construtiva, com menos violência e brutalidade, se não nos preocuparmos com o enquadramento dos nossos filhos para que cresçam serenamente, se não prestarmos atenção aos valores veiculados por esses meios e não produzirmos contravalores, não podemos aspirar a ganhar esta guerra. Temos, portanto, a verdadeira arena de hoje: as fibras informáticas, a internet, os meios de comunicação social, os jogos de vídeo, as produções artísticas, todos eles veículos de violência e brutalidade. É como um pântano emocional. É certo que é necessária uma ofensiva securitária mas é também urgente, paralelamente, uma ofensiva educativa, mediática, artística, de reposição de valores. Porque eles não ultrapassam as 30 mil! É uma pequena aldeia…

Sim, mas, apesar de tudo, dominam sete ou oito milhões de pessoas…

É uma aldeia que poderíamos enfrentar, mas de forma inteligente, identificando os lugares onde vivem ou se escondem, que não são apenas factuais, mas também virtuais. Teríamos de rebater todos esses discursos atraentes do Daesh. Os do Estado Islâmico anunciam aos rapazes, por exemplo, que lhes vão arranjar miúdas jiadistas — “jihadist babes”. E às raparigas dizem que têm para elas garanhões jiadistas — “jihadist stallions”. Isto tem um enorme efeito de atração que age no subconsciente. Se não detetarmos esse fator X e não produzirmos um outro fator X, não podemos ganhar esta guerra.

É curioso isso que diz, porque li há pouco tempo um artigo no “Foreign Affairs” que ao comparar a Al-Qaeda com o Daesh, diz que o “Daesh é sexy” e Al-Qaeda nem tanto. A Al-Qaeda são uns senhores mais velhos, sábios, que vinham dizer umas coisas sobre a pureza, a religião, a teologia... Estes são mais brutais.

Mas eles são sofisticados, eles sabem muito bem o que fazem. Porque, como eu dizia, oferecem um sonho duplo à juventude, não apenas da região, mas à juventude internacional. Um sonho de unidade, um sonho de dignidade. E esses jovens contam com o facto de eles existirem no terreno, contam que eles lhes ofereçam coisas tangíveis, não apenas palavras ou slogans, mas coisas concretas, palpáveis. E isso para os jovens é muito atraente. Além disso, conseguiram renovar o discurso, dar-lhe uma imagem jovem. Não é a cara do Bin Laden ou de alguém semelhante. São jovens que estão ali, jovens em boa forma física.

Parecem ninjas saídos de um filme de ação ou de uma BD pós-moderna…

E jogam também com a cor, com o som, com os cenários...

O hino do Estado Islâmico tem uma toada épica, de apelo militar...

Sim... Jogam com os cenários, com a cor — laranja e negro — dominam a arte, são competentes... Mas a verdadeira proeza é terem conseguido dar uma imagem nova ao discurso e trazerem os jovens para a linha da frente. E os jovens, depois da primavera árabe de 2011, estão francamente fartos de serem mandados por velhos, não querem saber de uma chefia de cinquentões. Precisam de agarrar as coisas com as próprias mãos. Acham que foram traídos vezes sem conta por governos e governantes que não souberam estar à altura, que não mostraram coragem, bravura, a atitude cavalheiresca de acompanhar as massas em vez de as venderem. Dizem que é mais do mesmo. Têm também a astúcia de fingir que não têm conteúdo intelectual... Mas têm. Se formos ao site do Estado Islâmico na internet...

A revista “Dabiq” é tecnicamente muito bem feita...

Sim. Se virmos o spot que lançaram nos meios de comunicação social, vemos que há ali uma forte vertente religiosa. É um discurso que se centra na dimensão jurisprudencial do Islão. Querem, por essa via, proclamar-se guardiães do templo, os verdadeiros fiéis, os que fundamentam nos textos toda a ação. Inscrevem-se nesse registo jurisprudencial, reunindo provas que justifiquem e legitimem todos os seus passos e iniciativas. Há, de facto, um pensamento — nada é gratuito. E se seguirmos atentamente o discurso, se o desconstruirmos, percebemos que há ali muito orgulho. Circula por aí um livro, “Le Resumé de la Quête de la Science Noble”, de um tal Abdel Kader ben Abdel Aziz, que advoga a violência e a exclusão e que se gaba de apresentar o Fiqh e a legislação islâmica na sua forma mais “genuína”.

Mas, qual é a forma genuína ou a mais genuína? Porque aí é que está o grande problema da interpretação dos textos...

Lá está, é a interpretação porque, uma vez mais, a arena não é apenas uma arena geográfica, topográfica. É a arena das fibras informáticas, da internet, dos intelectos, do subconsciente, mas também do texto, da compreensão do texto. Porque estes homens apresentam-se como os verdadeiros sábios, autoproclamam-se os únicos que possuem as credenciais escolásticas, os mais habilitados para interpretar o texto. Dizem que os outros sábios são funcionários dos Estados, são pagos pelos Estados e que por isso não nos podem inspirar confiança e nunca nos poderão transmitir o pensamento puro. Temos que ter consciência desta dimensão agressiva do discurso do Daesh e só a podemos combater com um discurso alternativo.

E no Islão há uma dificuldade acrescida, que não existe ou que só existe em menor grau, por exemplo, na Igreja Católica, onde é a própria Igreja que faz a interpretação e a atualização da palavra. No Islão não há esse tipo de autoridade central...

Não, mas isso pode até ser uma vantagem, porque como há várias interpretações, aquela que reunir o maior número de provas é a que é aceite. As interpretações do Daesh não estão tão bem ancoradas na palavra como eles querem fazer crer. Então, a produção de contraexemplos e contraprovas é possível e acessível.

Isso lembra-me a velha controvérsia sobre o “verdadeiro Marx”. A propósito do marxismo e da revolução comunista, muita gente dizia que Marx não queria nada daquilo — o socialismo real, o partido único, o Estado policial, a opressão. Mas o que é facto é que era uma leitura possível. Faço-lhe a mesma pergunta para o Islão: claro que não é a única leitura, nem talvez a verdadeira leitura, mas é ou não possível esta interpretação que o Estado Islâmico faz do Corão?

Não. É uma interpretação completamente falsa. Porque qualquer leitura, em qualquer religião, não pode ser feita sem ter em consideração a cosmologia geral dessa religião. É, como dizem os alemães, a Weltanschauung. Esta Weltanschauung é, de certa maneira, a imagem holística que permite encaixar as peças do puzzle, cada uma no seu lugar apropriado. Precisamos dessa cosmologia, dessa visão de conjunto. E é precisamente aqui que eles perdem o comboio. Porque os sábios do Islão sempre sublinharam esta visão de conjunto. Basta pegar no exemplo de Abu Hanifa, um dos grandes sábios do Islão, que tem o seu próprio rito islâmico, ou do imã Malik, do imã Shafii, do imã Ahmad ibn Hanbal, todos estes imãs ilustres fazem a articulação entre rito e visão do mundo, destacando as dimensões do “reconhecimento mútuo” e da “beleza de religiosidade” e sublinham esta Weltanschauung. Ou seja, esta legislação, esta grande legislação que preside ou deve presidir a toda a jurisprudência. Assim, os textos jurisprudenciais são meros detalhes, semelhantes às peças do puzzle que devemos encaixar no lugar para que possam compor essa imagem global, essa visão de conjunto, essa Weltanschauung. Se não tivermos isso presente, podemos pegar numa qualquer peça, colocá-la num qualquer lugar e afirmar que se trata de uma nova perspetiva, de uma nova imagem. Não podemos defender que a erva é azul só porque pegámos nas peças que estão no cimo do puzzle e que representam o céu ou o mar e as mudámos de lugar. E não podemos dizer que o céu é verde e defender que é uma leitura possível. A leitura só é possível no contexto da Weltanschauung, de uma determinada cosmologia. Fora desse contexto, não podemos afirmar que existam leituras possíveis. A primeira condição é que a peça encaixe na imagem que é global. Se a peça não estiver no sítio certo, temos que tirá-la e fazer um esforço para descobrir o local apropriado para a voltar a pôr. Há uma ciência que se chama Usul al-fiqh, isto é, o estudo das fontes da jurisprudência. E essa ciência gerou uma outra, que é a compreensão da finalidade da sharia. Se estivermos conscientes da finalidade da sharia, temos uma perspetiva global. É a diferença entre o construtor e o arquiteto. O construtor segue o projeto ao pormenor e no pormenor; não pode deslocar uma tomada elétrica, porque o projeto de pormenor indica que a tomada tem que ficar rigorosamente a 30 cm do chão. O arquiteto tem outra flexibilidade, precisamente porque tem uma visão de conjunto, porque imagina a casa numa perspetiva global e, por isso, tem em conta vários parâmetros: de estética, funcionalidade, acessibilidade, segurança... Pode mudar a posição da tomada em função de todos estes aspetos. É precisamente nisto que podemos combater o pensamento extremista, que não toma em consideração a Weltanschauung. Os extremistas afirmam-se detentores da verdade, quando afinal se baseiam em pormenores, e o que acontece é que essas ‘peças’ de pensamento não têm uma lógica harmoniosa que as junte de forma a que correspondam e comuniquem a visão global. Mas isto deveria ser divulgado de forma mais audível e eficaz. Há pessoas que não perceberam ainda isto, e dizem que é uma leitura possível — quando o não é. Gostava de voltar à multiplicidade de perspetivas, pois nem todas são lícitas. Uma interpretação não pode basear-se na mera vontade pessoal, tem que assentar na dedução, numa argumentação que deveria ser mais forte do que aquela ou aquelas que tenta rebater. Se essa argumentação for ‘quebrável’, então que se abandone; se se aguentar, que seja bem-vinda. É uma questão de prova contra prova e não apenas de vontade contra vontade.

Na base de muitas argumentações jiadistas está o facto de darem o mesmo valor a um hadith [relatos de episódios da vida do profeta Maomé compilados a partir da tradição oral] do que ao próprio texto original do Corão. Não lhe parece que essa sobrevalorização dos hadith é manipulada por interesses políticos?
Claro que sim. Um hadith não pode ser tirado do contexto em que foi pronunciado. É precisamente a contextualização de um hadith que nos ajuda a compreendê-lo. Não o podemos ler como se tivesse caído do céu de paraquedas, como que vindo do nada.

E acha que não há aquilo a que chamamos, por exemplo, a propósito do direito justiniano, interpolações, adendas cuja intenção possa ser a de salvaguardar, a de permitir, uma determinada coisa que eu queira fazer?

Claro que há manipulações, é precisamente a isso que assistimos agora: uma manipulação da interpretação, que, retirando os hadith e os versículos corânicos do contexto, reivindica a posse da verdade e da realidade. A tarefa dos sábios do Islão é, justamente, mostrar esse embuste, denunciar essa descontextualização e manipulação dos hadith. Mas para isso é necessário ter credibilidade, e daí a necessidade de reforçar as capacidades dos que o possam fazer. Criar novos ícones, reforçar o poder dos sábios do Islão, dar-lhes uma maior visibilidade, amplificar a sua voz para que possam ser ouvidos. Precisamos de ícones.

Há o risco de as pessoas no Ocidente — laicos, cristãos, ateus — começarem a tentar ensinar aos muçulmanos como é que devem viver a sua religião. O que não deixa de ser ridículo. É preciso que sejam os próprios muçulmanos a fazer este tip de reflexão.

Claro, mas nenhum sábio dirá que não a um conselho, venha ele de onde vier. Um conselho é sempre bem-vindo. Mas sim, estou de acordo consigo, do ponto de vista da responsabilidade principal. É, em primeiro lugar, aos muçulmanos que cabe enfrentar estes embustes de interpretação e de execução. Mas toda a ajuda, se a houver, não pode deixar de ser bem-vinda.

O ano de 1979 foi o ano da tomada do poder no Irão por Khomeini, do ataque à grande mesquita de Meca e da invasão soviética do Afeganistão. Foi um ano de viragem; este tipo de nova vaga ideológica islâmica começou aqui. A Al-Qaeda começou com ‘A Base’ no Afeganistão; depois do assalto a Meca, alguns dirigentes sauditas tiveram medo e por isso encorajaram ou financiaram os mais radicais dos movimentos radicais; e houve também o Irão, que difundiu uma imagem violenta e sectária do Islão, uma imagem primitiva... Concorda?

Bem, o que acabou de enumerar é uma amálgama infeliz, precisamente uma viragem histórica, já que em 1979 houve no Irão a instauração do Estado Islâmico baseado nos preceitos xiitas, que defendem uma interpretação específica dos textos do Islão fundamentada na narração da família do profeta, da descendência do profeta. Depois houve também um despertar dos fantasmas do passado, trabalhados por alguns historiadores e peritos, tal como o conceito de al-Mahdi, isto é, o imã esperado, que viria para trazer à terra a justiça depois de a terra ter sucumbido à injustiça e ao caos. Há quem acredite nisso e quem tenham querido e queira infiltrar o reino islâmico por essa porta, afirmando-se soldados de al-Mahdi. Devo salientar aqui que esta crença é partilhada por xiitas e sunitas. Mas o que as pessoas esquecem é que, na Suna, o al-Mahdi não pode anunciar-se como tal, não pode revelar-se. Só poderemos saber quem era, só poderemos identificá-lo depois de ter partido. Assim, ninguém, a não ser os profetas, pode anunciar a chegada do al-Mahdi, do redentor. Nada nem ninguém. É uma coisa que foi bem vincada pelos sábios do Islão. Houve um crescimento desse fosso de parte a parte. Uns proclamavam-se descendentes do profeta, outros justiceiros de Deus, outros cavaleiros de Deus.

Alguém que vem para anunciar o fim dos tempos, para nos salvar...

Precisamente. O cordeiro de Deus, o enviado, os três magos do século XXI... Todos nos lembramos do que se passou na Guiana com Jim Jones, em Waco com David Koresh...

Para terminar, sobre a questão da guerra de civilizações: no passado, os cristãos e os muçulmanos lutavam regularmente, mas hoje, com o tipo de armas que temos, se entrarmos num confronto de civilizações, talvez no fim não sobre nada. É o grande perigo de tudo isto.

Eu tenho confiança em nós, homo sapiens; acho que somos mais inteligentes do que isso. Penso, sinceramente, que não somos os imbecis que nos tentam convencer que somos. Acho que somos seres sublimes, bons, inteligentes, realistas, que vamos superar este desafio e vamos conseguir escrever as páginas de uma nova história comum.

Fonte: http://expresso.sapo.pt/cultura/2015-05-20-O-Islao-esse-grande-medo

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