Entre 1915 e 1922, 1,5 milhões de arménios perderam a vida às mãos do império otomano.
A sucessora do antigo império otomano continua a
manobrar as peças do jogo político quanto ao massacre perpetrado contra
os arménios há 100 anos. Na noite de 23 para 24 de Abril de 1915, 200
intelectuais e líderes políticos da comunidade minoritária dentro do
império foram reunidos em Istambul e mortos. Entre esse ano e 1922,
estima-se que 1,5 milhões de arménios tenham sido chacinados, a
definição por defeito de genocídio. Mas a Turquia, e a par dela e por
causa dela também os Estados Unidos, continuam a recusar classificar o
que aconteceu há um século dessa forma.
“As alegações arménias sobre os eventos de 1915 são infundadas”,
declarou na quinta-feira Recep Tayyip Erdogan, o presidente da Turquia,
na véspera das comemorações arménias do centenário. Dias antes, o Papa
Francisco e o Parlamento Europeu referiam-se aos eventos pela palavra
que define a matança sistemática de um grupo étnico, enfurecendo o
governo de Erdogan. Disse que as instituições, Igreja Católica e o braço
parlamentar da União Europeia nutrem “inimizade” pela Turquia por
falarem em genocídio – declarado pelo chefe dos católicos como o
“primeiro do século xx”, cem anos em que o mais famigerado dos
genocídios foi o que os nazis cometeram contra os judeus e outras
minorias. (E ainda que factos históricos demonstrem que o primeiro crime
dessa natureza do século passado foi o dos Hereros entre 1904 e 1908 na
Namíbia). “Por favor, vamos deixar a História para os historidadores”,
concluiu Erdogan perante personalidades como o príncipe Carlos de
Inglaterra numa denominada cimeira da paz.
O que nos conta a História, em conclusões largamente aceites e assumidas
no mundo, é que os arménios foram massacrados sob o argumento de
conspirarem para derrubar o império Otomano em parceria com os russos e
os cristãos. Esta ideia de um golpe de Estado que estaria a ser
fomentado começou a espalhar-se na última década do século xix, com as
primeiras perseguições e homicídios de cidadãos arménios dentro do
império otomano, mas o clímax só seria atingido na “orgia de violência
da Primeira Guerra Mundial”, referia ontem o “Telegraph”.
Em Abril de 1915, os milhões de arménios étnicos que viviam no actual
Oeste da Turquia foram deportados para o Sul do império. A caminho,
membros da organização especial paramilitar dos turcos otomanos
esperavam-nos numa emboscada: separaram os homens e mataram logo ali
centenas de milhares deles. A maioria das mulheres e crianças que
sobreviveram ao ataque morreriam à fome e sede nos desertos da Síria nas
semanas seguintes. Foi um dos mais sangrentos episódios da História
moderna.
A data escolhida há muito para recordar esses eventos foi 24 de
Abril, o dia em que as 200 personalidades arménias foram mortas. Mas
este ano, numa nova demonstração da falta de vontade da Turquia em
reconhecer o massacre por aquilo que foi, as comemorações oficiais da
campanha de Gallipoli – iniciada a 25 de Abril de 1915 – foram marcadas a
partir do dia 24. E um dos momentos históricos que todos, turcos,
curdos e arménios, costumam relembrar em conjunto veio, este ano,
ensombrar o centenário.
“Este ano o Estado turco planeou de forma cínica as comemorações da
batalha de Gallipoli para 24 de Abril numa nova tentativa de obscurecer o
genocídio arménio”, explicou ao i Benjamin Abtan, presidente da
organização de sociedade civil Movimento Europeu Antirracista (EGAM),
com base em Bruxelas, que está há mais de um mês a organizar uma
campanha pelo reconhecimento do que aconteceu há 100 anos.
O que faltava depois da convocatória de Erdogan era a reacção dos
Estados Unidos, cujo actual presidente jurou, em plena campanha para as
presidenciais de 2008, que “como presidente” iria “reconhecer o
genocídio dos arménios”, numa tentativa de chamar a si os votos dos dois
milhões de arménios que vivem nos EUA. Sete anos depois Barack Obama
ainda não proferiu a declaração e não será agora que o fará.
Após a tomada de posição da Igreja e do PE, jornalistas americanos
pressionaram a Casa Branca em antecipação das comemorações iniciadas
sexta-feira na Arménia e pelas comunidades espalhadas por outros partes
do mundo, como a Turquia e Jerusalém. Na quinta, após um encontro de
líderes da comunidade arménia dos EUA com o chefe do gabinete de Obama,
Denis McDonough, e o vice-conselheiro de segurança nacional para
comunicações estratégicas, Ben Rhodes, a Casa Branca viria confirmar que
o presidente se ia “abster” de falar em “genocídio”.
Não é do interesse de Erdogan. E ao
pôr as duas coisas na balança – reconhecer o genocídio e enfurecer a
Turquia ou, por outro, manter o país na sua esfera de influência – fica
claro qual das vias Obama decidiu seguir. A actualidade geoestratégica
explica porquê.
Durante a Guerra Fria a Turquia era a guarda avançada dos EUA contra a
URSS, numa aliança tão forte que ambos continuam hoje a depender um do
outro na NATO (mesmo quando a Turquia age contra as intenções dos EUA,
como tem acontecido desde o início dos bombardeamentos contra o
autodeclarado Estado Islâmico na fronteira turca, que está a ser
combatido no terreno por soldados curdos que Ancara continua a declarar
terroristas e a não apoiar, contra os pedidos dos EUA).
Essa interdependência reveste-se de importância redobrada numa altura
em que uma espécie de Guerra Fria está a renascer das cinzas opondo os
mesmos actores, a partir dos eventos do final de 2013 na Ucrânia –
quando o presidente pró-Rússia Viktor Yanukovitch foi deposto. Desde então, o país está mergulhado numa
guerra civil que continua em marcha, que já provocou seis mil mortos e
que opôs o oeste ucraniano que quer pertencer à União Europeia e o leste
maioritariamente composto por étnicos russos que não querem o Ocidente a
intrometer-se nos seus assuntos internos. A Ucrânia parece estar hoje a
ser instrumentalizada pelos envolvidos da mesma forma que o genocídio
dos arménios há um século o tem sido pela Turquia. E os dois eventos,
apesar de distintos, encontram-se hoje profundamente ligados.
Sem comentários:
Enviar um comentário