Na China de hoje, refletir sobre a
guerra pode ter consequências graves. Recentemente, o antigo jornalista
de investigação Luo Changping foi preso por ridicularizar o filme chinês
de propaganda “A Batalha do Lago Changjin”, um drama sobre o Exército
Voluntário Popular durante a Guerra da Coreia.
A longa metragem foi lançada no âmbito das comemorações do centésimo aniversário do Partido Comunista da China.
Com
um orçamento de produção de 200 milhões de dólares, o filme é realizado
pelos premiados cineastas Chen Kaige, Tsui Hark e Dante Lam e
protagonizado pelo célebre ator Wu Jing.
O lançamento ocorreu no
Dia Nacional da China, e a receita de bilheteria na China Continental
ultrapassou 4 mil milhões de yuans (cerca de 520 milhões de euros) em
menos de 10 dias.
O filme conta a história do heroísmo
altruísta dos soldados voluntários chineses para vencer dramaticamente o
exército americano na batalha do Reservatório de Chosin.
A batalha do Reservatório de Chosin
A
batalha aconteceu entre 27 de novembro e 13 de dezembro de 1950, um mês
depois de o líder chinês, Mao Tsé-Tung, ter lançado oficialmente a
China na Guerra da Coreia.
A guerra de três anos entre a Coreia
do Norte, apoiada pelos soviéticos, e a Coreia do Sul, apoiada pelas
Nações Unidas, começou depois de as forças militares norte-coreanas
terem cruzado a fronteira e entrado na Coreia do Sul, em 25 de junho de
1950.
Sob o slogan “resistir aos EUA para apoiar a Coreia”, Mao
ordenou o ataque do exército de libertação chinês às tropas das Nações
Unidas, compostas principalmente por forças dos EUA, para impedir a
unificação da Coreia sob forças capitalistas.
Para evitar
declarar guerra contra a ONU e os EUA, as tropas chinesas foram nomeadas
“Exército Voluntário Popular”. Cerca de 3 milhões de civis chineses e
pessoal militar serviram na Guerra da Coreia.
Durante a guerra,
120.000 soldados chineses do 9º Exército Voluntário Popular foram
enviados para o campo de batalha na Coreia do Norte, a meio do inverno,
para atacar 30.000 soldados das Nações Unidas no Reservatório Chosin.
O
exército voluntário chinês estava tão pouco equipado que dezenas de
milhares de soldados morreram congelados, quando as temperaturas no
Reservatório Chosin chegaram aos 30°C negativos.
Segundo
relatórios oficiais chineses, o exército teve 48.156 baixas durante o
combate, com quase 29.000 mortes não vinculadas à batalha.
Quanto às tropas da ONU, foram registadas 17.843 vidas perdidas, sendo 7.338 mortes devido ao tempo brutalmente frio.
Contudo,
as tropas das Nações Unidas conseguiram bater em retirada e evacuar
98.100 refugiados e civis que queriam escapar a um regime militar
apoiado pelos soviéticos no nordeste da Coreia do Norte, numa região
cercada pelo Exército Popular da Coreia.
Controvérsia e crítica
A
escolha da batalha como filme de propaganda patriótico é controversa,
porque a Guerra da Coreia foi um período muito doloroso para China e
Coreia.
Estima-se que a Coreia do Norte e a China tenham
perdido, cada uma, entre 200.000 e 400.00 soldados, enquanto o exército
sul-coreano perdeu 162.394.
O exército norte-americano perdeu
36.574 vidas na Guerra da Coreia, e as forças aéreas da União Soviética
perderam 335 aviões e 299 vidas.
A intervenção chinesa na
Guerra da Coreia foi altamente controversa até há pouco tempo, porque a
guerra causou enormes perdas de ambos os lados. Mais de três milhões de
civis coreanos morreram na guerra.
Segundo o analista chinês
Adam Ni, radicado na Alemanha, a batalha do Reservatório de Chosin foi
considerada pelo próprio 9º Exército Voluntário Popular uma “falha com
um custo massivo”.
“Mesmo antes do fim da batalha, já havia no
Centro do Partido um documento intitulado ‘Autocrítica do 9º Grupo
Militar sobre a batalha na frente leste‘, declarando-a um fracasso de
alto custo. Hoje, esse fracasso é celebrado“, escreve Adan Ni.
No
entanto, na China de hoje, refletir sobre a guerra pode ter
consequências graves. O antigo jornalista de investigação Luo Changping
foi preso por “infringir a reputação e honra dos mártires nacionais”
depois de ter escrito um comentário nas redes sociais chinesas.
“Depois
de meio século, as pessoas neste país pouco refletem sobre a causa
dessa guerra. A situação é como a das tropas congeladas da altura, elas
não questionaram a ‘grave decisão’ vinda de cima”, opinou Changping.
Apesar
de a maior parte dos comentários negativos sobre o filme e críticas
sobre a intervenção da China na Guerra da Coreia serem silenciados e
censurados, a mensagem de Luo espalhou-se pelas redes sociais.
Recentemente, o internauta @fangshimin partilhou duas interpretações ditas “pessoais” de bloggers chinesas sobre o filme, para mostrar o esforço de propaganda das autoridades em defender um patriotismo “a sangue quente” e o desejo de lutar pelo país.
“Aqui vai o roteiro de propaganda de Batalha do Lago Changjing“, diz o utilizador.
É comum ver bloggers pró-governo chinês a partilhar os pontos de vista das autoridades. Um exemplo notável foi a enxurrada de vídeos sobre a vida dos uigures em Xinjiang.
Jornalistas de investigação apontaram na altura que a chamada “experiência partilhada por mais de mil uigures” parecia tirada de uma cartilha comum, o que sugeria que os vídeos eram parte de uma campanha coordenada de influência.
@fangshimin acredita que as bloggers usaram a mesma tática para discutir o filme patriótico. Ambas diziam que tinham um avô que tinha lutado na Batalha do Reservatório de Chosin e que a história mostra que é necessário suprimir a masculinidade efeminada e a cultura de fãs.
O governo chinês anunciou recentemente que vai apertar as regras aplicáveis aos programas televisivos, e lançou uma campanha de comunicação para abolir os “homens efeminados” e a cultura de fãs.
O filme criou também um debate sobre as batalhas à volta da edição chinesa da Wikipédia.
William Long, conhecido blogger de tecnologia, notou que alguns utilizadores da Wikipédia estão continuamente a tentar editar a nota original sobre o termo chinês Batalha do Reservatório de Chosin, para sugerir que a China teve uma “vitória decisiva” no confronto.
O repórter do New York Times Evan Hill, realça entretanto que no exterior da China o espaço para expressão crítica sobre a história do país está também a encolher.
Segundo Hill, Hollywood tem embarcado alegremente numa auto-censura à sua produção artística — em nome dos lucros no mercado chinês.
“É muito engraçado que o cinema ocidental não produza nada sobre o nacionalismo anti-China. A indústria de Hollywood quer desesperadamente dinheiro, e entretanto o filme mais popular do mundo vai ser sobre soldados chineses a derrotar soldados americanos na Guerra da Coreia.”
https://zap.aeiou.pt/a-batalha-do-lago-changjin-transforma-a-dolorosa-historia-da-guerra-da-coreia-em-gloriosa-vitoria-da-china-441830
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