O período de 1870 a 1900 foi marcado pelo aumento alarmante da
pobreza, da ansiedade corporativa com a influência da política, dos
índices de desigualdade social, dos colapsos nervosos e das taxas
vertiginosas de suicídio em contraste com o crescimento astronômico da
economia industrial norte-americana.
Por conta disso, o filósofo Charles Sanders Peirce, em um de seus
ensaios, nomeou a época como "era da dor", porém ele poderia estar se
referindo também às décadas em que o campo da cirurgia era marcado por
banhos de sangue e muito sofrimento. Toda essa dor vinha do fato de não
existirem métodos de antissepsia, procedimentos de anestesia, estudos
especializados em geral e profissionais capacitados o suficiente.
Para alguns estudiosos, a Idade Média foi uma época de pura sujeira e
superstição com relação a como as pessoas deveriam ser tratadas,
enquanto a Idade Moderna foi responsável pelo desenvolvimento de ideias
científicas que permitiram vários avanços. O século XIX foi considerado a
"era de heróis" e impulsionou a medicina de uma vez por todas.
Os açougueiros
Os cirurgiões precisavam conter os pacientes
Demorou muitos anos — mais especificamente até o fim do século XIX —
para que o conceito de cirurgião fosse desenvolvido propriamente e
respeitado. Até que isso acontecesse, eles eram considerados verdadeiros
açougueiros pelas técnicas que usavam para operar e tratar os
pacientes. Nem todos eram formados, e a maioria chegava a ser iletrada,
pois na época a entrada nas melhores universidades era limitada às
classes nobres, então os pobres se viravam como podiam.
Robert Liston tornou-se um dos cirurgiões mais conceituados de
Londres apenas pela agilidade e destreza com que literalmente decepava
partes do corpo humano. Apesar de ser formado, ele não pensava no quadro
clínico, apenas em poupar a dor do paciente, e conseguia arrancar uma
perna em cerca de 30 segundos. Inclusive, durante uma de suas infames
operações, ele removeu um membro tão rapidamente que cerrou os dedos do
próprio assistente, que morreu de infecção semanas depois.
Os abatedouros da saúde
Os pacientes ricos preferiam ser operados em casa
A medicina no século XIX foi aterrorizante. As cirurgias tinham taxa
de mortalidade de 300%, por isso os hospitais obrigavam os pacientes a
pagar antecipadamente, pois já sabiam que as chances de sobrevivência a
um pós-operatório eram mínimas. Com procedimentos rudimentares e
bárbaros, os ambulatórios eram piores que abatedouros; na verdade, eram
como grandes lixões. Os espaços fediam a sangue coagulado e
decomposição, além de serem infestados de ratos, sujidades que os
pacientes carregavam e até mesmo fezes.
Não existia nenhum tipo de infraestrutura. Os instrumentos não eram
higienizados e tudo o que deveria ser descartável era lavado com a água
suja de cisternas e poços já contaminados pelo ambiente. O sangue dos
pacientes se misturava e entrava em contato com as mucosas dos
cirurgiões, que pareciam se divertir com o prazer sádico dos esguichos.
Eles não lavavam as mãos, tampouco os aventais, que eram usados até
mesmo na cidade: quanto mais ensanguentados, repletos de tripas e pus de
vários pacientes estivessem, mais eram vistos como profissionais
ocupados e rápidos. Um avental limpo era sinônimo de que o cirurgião era
ocioso e não dava conta de minimizar a dor.
No século XIX, as pessoas eram obcecadas com a ideia de avanços na
ciência, por isso praticamente invadiam teatros e outros ambientes onde
as cirurgias eram realizadas para poderem assistir ao banho de sangue
das vítimas. Com isso, levavam a imundície das ruas para os locais,
deixando o piso tão emporcalhado que era necessário limpá-lo antes de o
cirurgião começar a atuar.
O sangue era um sinal de glória para os médicos tanto quanto o pus.
Segundo Robert Liston: "o pus era tão inseparável da cirurgia quanto o
sangue". Ou seja, as feridas infectadas eram vistas como saudáveis, pois
indicavam que as pessoas estavam se recuperando.
Os braços da medicina
Todos queriam ver as operações
As pessoas tinham tanto medo de serem operadas que eram arrastadas
para a mesa de cirurgia. Os médicos gostavam da fama de serem
sanguinários e violentos na hora da abordagem, mais uma vez ressaltando
que muitos deles se tornavam médicos mais pelo status e pela natureza
sangrenta e visceral da profissão do que pela competência e pelo
comprometimento com um ofício tão sério.
Em um século em que o aprendizado acontecia na prática, além de os
pacientes passarem por uma agonia sem fim pela falta de anestesia, era
comum que muitos deles tivessem a cirurgia marcada para acontecer dentro
de um teatro com 150 estudantes e estudiosos, sobre uma mesa suja na
qual cadáveres eram examinados pelos alunos.
Quando um paciente era conduzido para uma operação, eram necessários
vários homens para contê-lo ao longo de todo o procedimento, que
normalmente durava segundos. Uma amputação rápida era considerada mais
fácil de consertar, pois reduzia significativamente a probabilidade de o
paciente sangrar até a morte. A quantidade de tempo que alguém passava
sobre a mesa cirúrgica estava diretamente associada à probabilidade de
sair vivo dela.
Para que amputassem uma perna em menos de 2 minutos, os cirurgiões
prendiam facas entre os dentes, para agilizar o processo, e pediam que
os assistentes fizessem o mesmo. A dor extrema por vezes levava as
pessoas a desenvolverem problemas psicológicos irreversíveis. Tumores
eram removidos à sangue frio de qualquer parte do corpo, que ficava
totalmente exposta aos germes durante o procedimento. Para fechar a
incisão, era usado um ferro em brasa para parar o sangramento e
cauterizar a pele.
Fazendo a dor dormir
Médicos passaram a borrifar substâncias tranquilizantes
O conceito moderno de anestesia demorou para ser formulado
cientificamente e de uma maneira segura e eficaz. Enquanto isso não
acontecia, os cirurgiões usaram uma variedade enorme de métodos para
tentar diminuir a dor. Por vezes, o paciente recebia doses de gim ou
uísque para que desmaiasse de embriaguez o mais rápido possível. Alguns
preferiam fazer infusões de ervas ou narcóticos, como ópio do Oriente.
No entanto, os opiáceos costumavam ser tão eficazes que levavam o
paciente a óbito.
Foi em meados do século XIX que o éter começou a ser usado como droga
nos Estados Unidos. Durante uma festa organizada pela aristocracia na
cidade de Jefferson, no Missouri, um médico chamado Crawford Long
descobriu que inalar éter prevenia a dor. Ele nunca publicou essa
descoberta oficialmente, por isso em 1846 o dentista William Morton se
autodeclarou a primeira pessoa a usar com êxito o éter como anestésico
ao extrair um dente sem causar dor. A substância, porém, fazia os
pacientes vomitarem violentamente e se mostrou inflamável, o que
dificultava a cirurgia perto de velas ou candeeiros.
Em 1847, o obstetra escocês James Simpson começou a experimentar
produtos químicos como anestésico, visto que já estava ciente das
desvantagens do éter. Foi então que se deparou com o clorofórmio e
passou a usá-lo em mulheres durante o parto, o que gerou grande
controvérsia médica e religiosa na época. Um ano depois, em janeiro de
1848, Hannah Greener morreu aos 15 anos de idade após fazer uso da
substância antes de uma cirurgia para remover uma unha encravada. Muitos
acreditavam que a morte dela foi motivada pela arritmia cardíaca que o
clorofórmio causa.
O caso de Greener lançou uma luz sobre o problema que a anestesia se
tornava quando usada em procedimentos cirúrgicos em que só uma parte do
corpo exigia entorpecimento. A partir daí, a busca por um anestésico
local teve início.
Uma nova era
Joseph Lister
Com a anestesia, os cirurgiões podiam focar mais na maneira como a
operação estava sendo feita, diminuindo a barbárie e se dedicando ao
entendimento estratégico do procedimento. Com isso, começaram a passar
mais tempo dentro do corpo humano com os equipamentos totalmente
infectados, resultando em um aumento alarmante nos índices de
mortalidade.
O médico cirurgião Joseph Lister começou a galgar os seus primeiros
passos bem quando a medicina como ele conhecia estava sendo
transformada. Ele foi o responsável pelos primeiros métodos de cirurgia
asséptica e pela introdução de instrumentos estéreis nas salas de
cirurgia. Como teste, começou a borrifar uma solução de ácido carbólico
em instrumentos, aventais e incisões. Foi assim que descobriu que uma
lesão que recebia a substância dificilmente evoluía para um quadro de
gangrena. Ele teve certeza de seus estudos em meados de agosto de 1865,
quando aplicou o produto na fratura exposta de um garotinho de 7 anos de
idade. Durante 6 semanas, Lister limpou a ferida e renovou os
curativos; no último dia, notou que nenhuma infecção tinha se espalhado,
e o menino teve alta do hospital.
Depois de publicar essas descobertas em artigos da revista The Lancet,
em 1867, Lister teve que encarar censuras e advertências de um meio
entrincheirado para que o método fosse levado a sério e se tornasse
parte do protocolo médico mundial.
Fonte: https://www.megacurioso.com.br/ciencia/113848-a-era-da-dor-como-eram-feitas-as-cirurgias-no-seculo-xix.htm
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