Foi apenas há dois anos que Abiy Ahmed foi aplaudido como um defensor da paz por ter acabado com o conflito de décadas com a Eritreia, sendo até galardoado com o Nobel da Paz, mas o seu discurso mudou de tom no último ano. De achar que a “guerra é o epítome do inferno para todos os envolvidos”, o primeiro-ministro da Etiópia está a agora a disputar uma guerra civil na região de Tigré, no norte do país.
Milhares de militares e civis já perderam a vida desde o início do conflito há cerca de um ano e mais de 60 mil etíopes já procuraram asilo no vizinho Sudão, com as Nações Unidas a estimar que cerca de 350 mil tigrés estejam a passar fome, com cerca de 1.8 milhões de habitantes da região numa situação de emergência.
O conflito começou a 4 de Novembro de 2020, quando Ahmed ordenou uma ofensiva militar contra a Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT), como retaliação a um ataque numa base militar onde estavam tropas governamentais.
No entanto, as raízes desta guerra civil já existem há décadas. Enquanto se expandia como império, a Etiópia acabou por ser um agregado de várias etnias e culturas diferentes, o que acabou por levar a tensões e conflito.
Até ao início da década de 90, a Frente da Libertação do Povo Eritreu (FLPE) era aliada dos tigrés na luta contra o governo militar etíope de Mengistu Haile Maria. Com a sua queda em 1991, a Eritreia conseguiu a independência, enquanto que a FLPT se tornou a força principal na coligação que dominou o país 2018.
Desde 1994 que a Etiópia está organizada num sistema federal, com diferentes grupos étnicos a controlar 10 regiões. A FLPT foi muito influente na criação deste sistema, o que levou a fim azedo da aliança com a Eritreia quando rebentou a guerra entre os dois países em 1998. Desde então que a Eritreia vê os tigrés como inimigos.
Os dois países odiavam-se e, apesar de terem chegado a um acordo em 2000, ficaram num estado de tensão armada durante quase 18 anos. A coligação que então governava a Etiópia deu autonomia às regiões do país, mas manteve um controlo apertado no governo central.
O descontentamento com esta situação levou a protestos e a que Abiy Ahmed, na altura do Partido Democrático Oromo, acabasse se tornar primeiro-ministro em 2018. Quando chegou ao poder, Ahmed prometeu fazer reformas políticas estruturais — e fê-las mesmo.
A principal mudança geopolítica veio com o fim oficial da guerra entre a Eritreia e a Etiópia e a conquista do Nobel da Paz. Agora aliado da Eritreia, Ahmed contava com o apoio dos antigos inimigos na luta contra os tigrés. O primeiro-ministro também dissolveu a coligação liderada pela FLPT em 2019 e afastou vários líderes tigrés acusados de corrupção do poder.
Ahmed criou um novo Partido da Prosperidade, mas a FLPT recusou integrá-lo. O novo partido de Ahmed venceu as eleições de Julho com uma larga maioria — que tinham sido adiadas devido à pandemia — conquistando 410 dos 436 lugares e um mandato de cinco anos. No entanto, a região de Tigré não votou e houve também acusações da oposição de que as eleições não foram limpas.
Berhanu Nega, do partido Cidadãos Etíopes pela Justiça Social, apresentou mais de 200 queixas, alegando que os observadores foram bloqueados por militares e responsáveis governamentais em várias regiões do país.
A guerra civil chegou a um ponto ainda mais tenso em Setembro de 2020, quando os tigrés desafiaram o governo central e decidiram organizar as suas próprias eleições regionais, algo que o executivo de Ahmed considerou ilegal. Ambos os lados acusam o outro de ser ilegítimo, com a FLPT a argumentar que o governo central não foi testado numa eleição nacional desde que Ahmed chegou ao poder em 2018, já que algumas regiões da Etiópia não votaram em Julho.
Os tigrés consideram também amizade de Ahmed com o Presidente da Eritreia, Isaias Afwerki, “sem princípios”. Afwerki enviou tropas para a região Tigré em apoio ao novo aliado.
Em Outubro de 2020, o governo central também suspendeu o financiamento e cortou as relações com a região, algo que a administração regional considerou uma “declaração de guerra”. A gota de água final para o início da guerra foi quando Ahmed acusou a FLPT de “cruzar uma linha vermelha” depois desta ter alegadamente atacado as bases militares do governo central para roubar armas.
“O governo federal é assim obrigado a entrar num confronto militar“, declarou o primeiro-ministro etíope. Desde o início do conflito militar a 4 de Novembro de 2020, mais de seis milhões de habitantes na região tigré tiveram de abandonar as suas casas. Segundo as estimativas de investigadores da Universidade de Ghent, já mais de 10 mil pessoas morreram e houve 230 massacres. O conflito também está a causar preocupação sobre a estabilidade da região do corno de África e sobre uma possível separação das regiões da Etiópia.
Crimes de guerra cometidos por ambos os lados, acusa ONU
Nas últimas semanas, as ameaças têm crescido ainda mais. Depois do conflito estar mais contido no norte do país, com um cerco das forças centrais aos tigrés, a guerra está agora a mover-se mais para sul do país. A FLPT tem conquistado diversas localidades estratégicas na região de Amhara e contam agora com o apoio do Exército de Libertação Oromo, uma facção rebelde da Frente de Libertação Oromo. Juntas, as forças têm ganhado terreno contra o governo central e querem chegar à capital, Adis Abeba.
Em resposta ao avanço, Abiy Ahmed declarou o estado de emergência na segunda-feira, argumentando que as forças tigrés representam “um perigo grave e iminente” para a existência da Etiópia. “Todos vão ser testados”, escreveu no Twitter, dizendo que a declaração foi feita para “encurtar o período de tribulação e dar tempo para se encontrar uma solução”.
O estado de emergência entra em vigor imediatamente e dura seis meses. O governo pode impor um recolher obrigatório, recrutar os cidadãos maiores de idade para o serviço militar, mobilizar tropas para as regiões do país, suspender as licenças dos meios de comunicação e romper os serviços de transporte e viagens.
O executivo poderá também deter por tempo indeterminado e sem ordem judicial qualquer pessoa suspeita de ter ligações com grupos terroristas. A FLPT é considerada um grupo terrorista pelo governo de Ahmed. As administrações locais podem ser dissolvidas e é proibida qualquer manifestação de oposição à declaração.
Num discurso perante as forças militares, Abiy Ahmed também deixou mais ameaças. “A cova que está a ser cavada vai ser muito funda, vai ser onde o inimigo será enterrado, não onde a Etiópia se vai desintegrar. Vamos enterrar este inimigo com o nosso sangue e ossos e elevar novamente alta a glória da Etiópia”, atirou.
Entretanto, um relatório das Nações Unidas fez um retrato da “brutalidade extrema” do conflito no país africano. A Alta Comissária para os Direitos Humanos fala em “crimes contra a humanidade” cometidos por ambos os lados.
“A gravidade das violações e dos abusos que identificamos ressaltam a necessidade de responsabilização dos responsáveis, independentemente do lado em que se encontrem”, disse Michelle Bachelet, em Genebra, na apresentação do relatório elaborado em conjunto com a Comissão dos Direitos Humanos da Etiópia, criada pelo governo etíope. “Existem razões para acreditar que todas as partes em conflito na região do Tigré cometeram, em vários níveis de gravidade, violações contra o direito internacional, direito humanitário e direito internacional dos refugiados, o que pode constituir crimes de guerra ou crimes contra a humanidade”, indica o documento.
Já Daniel Bekele, comissário da Comissão Etíope dos Direitos Humanos, acredita que o relatório “é uma oportunidade para todas as partes reconhecerem responsabilidades, para se empenharem em medidas concretas sobre responsabilidades, na reparação (dos crimes) junto das vítimas, e de encontrarem uma solução duradoura para porem um fim ao sofrimento de milhões de pessoas”.
O documento refere-se ao período entre o dia 3 de Novembro de 2020 – quando o primeiro-ministro e Prémio Nobel da Paz, Abiy Ahmed, desencadeou a ofensiva contra as autoridades dissidentes da região montanhosa do Tigré – e o passado dia 28 de Junho, data do cessar-fogo unilateral assumido por Adis Abeba.
O relatório tem como base 296 entrevistas confidenciais e reuniões com as autoridades locais e federais da Etiópia, organizações não-governamentais e equipas médicas.
Mesmo assim, a equipa que elaborou o documento conjunto encontrou vários obstáculos para efectuar as visitas a certos pontos do Tigray, sublinha a Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
A investigação também levantou dúvidas em relação à imparcialidade dos relatos porque um dos investigadores do Alto Comissariado foi expulso pelas autoridades juntamente com outros seis funcionários da ONU.
Antes da publicação do documento, o TPLF criticou os investigadores que acusou de estarem a aplicar uma “metodologia pouco eficiente e que mancha a reputação” do Alto Comissariado.
Por contrário, o Governo de Adis Abeba encarou a colaboração como uma “demonstração de seriedade” com que abordou as questões respeitantes aos direitos humanos.
O relatório denuncia, apoiado em depoimentos, “ataques indiscriminados” contra civis, execuções extrajudiciais, atos de tortura, sequestros e detenções arbitrárias, bem como violência sexual e saques.
Os investigadores encontraram sobreviventes, incluindo casos de violência sexual contra homens e relatam o caso de um jovem de 16 anos, violado por soldados eritreus, e que acabou por se suicidar.
A tortura é frequente sendo que as “vítimas são espancadas com cabos elétricos e barras de ferro e mantidas presas de forma incomunicável, ameaçadas com armas de fogo e privadas de comida ou água”.
O relatório refere-se igualmente a massacres de centenas de civis realçando que “todas as partes” envolvidas no conflito atacaram civis, e tiveram como alvos as escolas, hospitais e locais de culto religioso.
O documento frisa também o papel das tropas da Eritreia que apoiaram as forças do Governo e que forçaram os refugiados a regressarem à Etiópia.
Os autores do inquérito elaboraram uma série de recomendações em que, nomeadamente, pedem ao Governo a responsabilização dos autores dos crimes que foram cometidos.
António Guterres também já anunciou no Twitter que falou na quarta-feira com Ahmed para “oferecer os bons ofícios para criar as condições para o diálogo e para que a luta acabe”.
Os EUA também já tinham acusado o executivo etíope em Agosto de estar a agravar a crise humanitária ao bloquear o acesso a Tigré, algo que o governo de Adis Abeba negou fazer propositadamente.
https://zap.aeiou.pt/ano-guerra-civil-tigre-etiopia-se-desintegre-442503