Os
países ricos têm ignorado os alertas da OMS e continuam a açambarcar as
vacinas sem levantarem as patentes e darem a oportunidade aos mais
pobres de as produzirem internamente. Há especialistas que consideram
que este apartheid na vacinação é um crime contra a Humanidade.
Mais
um dia, mais um aviso da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre as
desigualdades na vacinação entre países ricos e pobres.
O
Director-Geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, voltou a insistir na
quarta-feira que a prioridade deve ser vacinar quem ainda não tem as
duas primeiras doses e não administrar doses de reforço para quem já
está protegido.
“Nenhum país vai sair da pandemia com doses de
reforço. Programas de reforço generalizados vão prolongar a pandemia, em
vez de a acabar, ao desviarem o fornecimento para países que já têm
níveis altos de cobertura vacinal, dando mais oportunidades ao vírus de
se espalhar e mutar“, afirmou aos jornalistas.
O dirigente
sublinhou também que a prioridade é reduzir as mortes e que “a grande
maioria das hospitalizações e mortes ocorrem em pessoas não vacinadas,
não em pessoas sem dose de reforço”.
Caso o vírus se continue a
espalhar descontroladamente nos países pobres, alerta, aumenta também o
risco de nascerem novas variantes mais contagiosas, como a Ómicron, ou
até uma que seja resistente às vacinas.
Já desde Agosto que a
OMS apelou aos países desenvolvidos que não avançassem com terceiras
doses até que os países mais pobres conseguissem aumentar a taxa de
vacinação, tendo sido recomendada uma moratória até ao final de 2021,
para que cada país conseguisse imunizar pelo menos 40% da sua população.
Mas os países ricos têm feito ouvidos de mercador. De acordo
com os dados das Nações Unidas, cerca de 67% das pessoas em países ricos
já têm pelo menos uma dose, mas esse número não chega aos 10% nos
países em desenvolvimento.
“É francamente difícil de entender
como um ano depois da administração das primeiras vacinas, três em
quatro profissionais de saúde em África continuam sem estar vacinados”,
afirmou, que lembra que foram dadas vacinas suficientes este ano para
que fosse alcançado o objectivo de ter 40% da população de cada país
vacinada, mas o açambarcamento dos países ricos impossibilitou a sua
concretização
Perante esta realidade, há apelos a que se passe dos alertas à acção. Numa coluna de opinião no
The Guardian,
Anthony Costello, pediatra e ex-director do Institute for Global Health
da University College London, defende que os países desenvolvidos e as
gigantes farmacêuticas devem ser acusados de crimes contra a Humanidade.
“O contraste é forte: a quota de pessoas totalmente vacinadas
em país de rendimentos altos, médio-altos, médio-baixos e baixos é de
69%, 68%, 30% e 3,5%, respectivamente”, começa o especialista.
O
Ocidente tem “apoiado uma política deliberada que nega vacinas aos
países mais pobres do mundo e defende um sistema económico imoral e
anti-ético que coloca as patentes das grandes farmacêuticas à frente de
milhões de vidas”.
O médico aponta também as falhas do programa
Covax da OMS, que foi criado em Setembro de 2020 com o objectivo de
acelerar o desenvolvimento de vacinas e para garantir uma distribuição
equilibrada por todo o mundo.
“O alvo do esquema Covax era
entregar 2 mil milhões de doses até ao fim deste mês. E mesmo assim, até
5 de Dezembro, mais de um ano depois do seu lançamento, o Covax tinha
enviado apenas 666 milhões de doses para 144 países, com apenas 250
milhões doadas aos 95 países mais pobres”, critica, lembrando também que
“milhões de vacinas dadas aos países africanos já tinham passado da
validade”.
Em Abril de 2021, a OMS também criou um centro para a
transferência da tecnologia mRNA das vacinas da covid-19 para tentar
acelerar a produção, lembra Costello, mas as farmacêuticas que produzem
estas vacinas recusaram participar.
“O que pode o mundo fazer
quando enormes interesses financeiros são valorizados antes da
sobrevivência de milhões de homens, mulheres e crianças? Uma opção é a
suspensão das patentes”, sugere.
Há um ano, vários países
pediram o levantamento da propriedade intelectual das vacinas, tendo os
Estados Unidos e a França apoiado a medida. No entanto, a Alemanha, o
Canadá, o Japão, a Coreia do Sul e o Reino Unido bloquearam-na para
“protegerem as grandes farmacêuticas“.
O especialista aponta
também o dedo a Bill Gates, que perante o enorme pico de casos vivido na
Índia, se manifestou contra a libertação das patentes. Agora, o
multimilionário fundador da Microsoft veio a público dizer que acredita
que o
pior ainda está para vir.
Outra
opção é apelar à ética dos investidores e accionistas destas empresas,
mas “há poucos precedentes históricos, quando as acções estão em alta,
destas demonstrações de altruísmo”. Neste cenário, surge uma outra
alternativa, o recurso às convenções da ONU.
“Restam poucas
dúvidas que estas políticas quebram com a convenção dos direitos da
criança da ONU, que define que os estados “combatam as doenças e a
subnutrição através da aplicação da tecnologia disponível“, com atenção
particular para as necessidades dos países em desenvolvimento”, refere o
pediatra, citando também os princípios da ONU para as empresas que
exigem que os negócios ajam de acordo com os direitos humanos
estipulados nas leis.
Dada a falta de punições para quem
desrespeita as convenções, resta a opção nuclear: a acusação no tribunal
internacional por crimes contra a Humanidade com base nos “ataques
sistemáticos e alargados contra a população civil” e os “actos desumanos
que intencionalmente causam grande sofrimento ou danos para a saúde
mental ou física” reconhecidos no artigo 7 do estatuto de Roma.
“Não
podemos deixar esta carnificina continuar. Podemos ver mais 12 milhões
de mortes no próximo ano. As pessoas pelo mundo querem justiça. Devem
ter direito ao acesso às vacinas, especialmente com muitas das vacinas
foram investigadas e desenvolvidas por cientistas pagos pelos
contribuintes. Qualquer pessoa que bloqueie o caminho que salva vidas em
nome dos lucros privados deve ser responsabilizada”, remata o
especialista.
“Os países pobres não podem depender da caridade”
Costello não é o único a partilhar desta opinião. Num
artigo
da conceituada revista sobre Medicina BMJ, é também sustentado o
argumento a favor do fim das patentes, lembrando que, nos primeiros três
meses de 2021, a vacina da Pfizer trouxe lucros de 3 mil milhões de
euros.
A AstraZeneca e a Moderna, cujas vacinas foram criadas
com fundos públicos contam também com lucros astronómicos. “Havia alguma
esperança que a vacina da Universidade de Oxford, que foi desenvolvida
com dinheiro público, fosse libertada da patente, mas os direitos foram
dados exclusivamente à AstraZeneca, que não tem sido totalmente
transparente sobre os preços e sobre os termos da licença”, aponta.
“Até
Setembro de 2020, cerca de 30 nações ricas já tinham esvaziado as
prateleiras para o resto do mundo através de encomendas em avanço, 13
levando ao apartheid na vacinação. O Canadá comprou doses suficientes
para vacinar os seus cidadãos cinco vezes. Até ao fim de 2021, cinco
nações vão ter mil milhões doses por usar, apesar de alguns dos países
mais pobres ainda não terem recebido as vacinas pelas quais pagaram”,
relata o artigo.
As falhas do Covax são também um problema, com
os países do G7 a doar menos de 8% das doses precisas para que o
programa chegasse ao seu objectivo. Mesmo assim, os países pobres não
devem só depender das doações dos mais ricos.
Perante a pior
crise de saúde pública do século, as vacinas “continuam a ser uma
mercadoria detida pelas empresas e vendidas aos ricos”. “As doações são
um vestígio de uma injustiça colonial e as reparações estão muito
atrasadas. O modelo de caridade colonial “trickle down” na vacinação
falhou”, critica.
“A única forma sustentável de avançarmos é
globalizar a produção para que os países em desvantagem não fiquem
dependentes da caridade. Isto foi alcançado com a crise da SIDA, mas só
depois de vários anos e de muitas mortes. Os países mais pobres precisam
de um relaxamento nas patentes, da transferência da tecnologia e de
apoio para poderem estabelecer centros de produção regionais“,
recomenda, salientando que estes países têm capacidade de produzir
vacinas seguras e eficazes.
Um sindicato internacional de
enfermeiros de 28 países também fez um pedido às Nações Unidas em
Novembro para que as patentes das vacinas fossem levantadas
temporariamente, alegando que estas têm custado vidas nos países pobres e
colocam em risco as vidas dos profissionais de saúde.
A carta
enviada em representação de mais de 2.5 milhões de profissionais de
saúde — incluindo de Portugal — e com o apoio de uma coligação de
partidos e movimentos de esquerda, lembra que os enfermeiros
presenciaram “números chocantes de mortes e imenso sofrimento” por causa
da inacção dos políticos.
Pelo menos 115 mil profissionais de
saúde em todo o mundo já morreram com a covid-19 e apesar de, em média,
40% estarem totalmente vacinados, em África e no Pacífico ocidental,
este número está abaixo de um em cada 10.
“Enquanto
trabalhadores na linha da frente, estamos num bom lugar para testemunhar
contra a violação do direito de todos de aproveitarem a melhor saúde
física e mental possível por causa do impacto de uma suspensão atrasada
do acordo TRIPS (que define a propriedade intelectual) devido à
covid-19″, alerta a carta.
Shirley Marshal Díaz Morales,
vice-presidente do sindicato Federação Nacional dos Enfermeiros do
Brasil afirma que “está na hora dos governos do mundo priorizarem a
saúde das pessoas em vez dos lucros das corporações multinacionais ao
aprovar a suspensão da patente da vacina”.
https://zap.aeiou.pt/o-apartheid-na-vacinacao-continua-e-os-paises-ricos-e-as-farmaceuticas-podem-ser-processados-por-crimes-contra-a-humanidade-452149
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