A região de Tigray, no norte da Etiópia, vive uma guerra,
motivada por diferenças étnicas e religiosas, que matou dezenas de
pessoas e originou milhares de deslocados. “Já há pessoas a morrer à
fome” e caminhamos para “um desastre humanitário de proporções
bíblicas”.
O conflito armado estalou em Tigray, região da Etiópia que faz fronteira com a Eritreia e o Sudão, em Novembro passado.
Tudo começou quando as tropas regionais da Frente de Libertação do Povo de Tigray
(TPLF na sigla em Inglês), que controlaram a região durante os últimos
30 anos, tomaram de assalto bases militares federais, após romperem
relações com o primeiro-ministro Abiy Ahmed.
O exército da Etiópia ripostou e capturou a capital da região,
Mekelle, acusando o TPLF de ameaçar a integridade territorial do país e
de querer derrubar o Governo.
As autoridades regionais revelam que já morreram, pelo menos, 52 mil pessoas, uma versão que o Governo nega, falando apenas em algumas baixas civis.
Cerca de 2 milhões de pessoas terão fugido devido ao conflito e
haverá à roda de 60 mil pessoas de Tigray a viver em campos de
refugiados no Sudão.
75% da população precisa de ajuda alimentar de emergência
Os três partidos da oposição ao Governo etíope – Partido da
Independência de Tigray (TIP), Salsay Weyane Tigray e o Congresso
Nacional do Grande Tigray – alertaram, num comunicado conjunto, que se não chegarem medicamentos e comida à zona de forma imediata está “iminente um desastre humanitário de proporções bíblicas“.
Já há pessoas a morrer de fome, nomeadamente crianças que falecem durante o sono, segundo reporta o blogue FoRB in Full que faz advocacia pela liberdade de religião e de crença em todo o mundo.
Um porta-voz da ONU citado pela BBC fala em relatos de pessoas que são obrigadas a comer cascas de árvores e a beber água de poças por não terem outras condições para se alimentarem.
Um elemento da administração de Tigray salienta que há 4,5 milhões de pessoas, cerca de 75% da população da região, a precisarem de ajuda alimentar de emergência.
O Governo alega que há dificuldades em fazer chegar comida às
populações porque “o TPLF está a matar motoristas” de camiões com
abastecimentos. Assim, acusa o TPFL de estar a “orquestrar a fome como arma para manipular a opinião global e obter simpatia para a sua causa”.
Da parte dos partidos opositores ao Governo, acusa-se que “cidades e aldeias foram demolidas por bombardeamentos cegos de artilharia“.
“As nossas instalações de saúde e de educação foram saqueadas e destruídas
e, para surpresa de qualquer mente sã, as nossas instituições
religiosas também foram atacadas e os seus bens sagrados saqueados”,
salientam os partidos, apelando à retirada das tropas da Etiópia e da
Eritreia da região e pedindo uma investigação a alegados crimes de
guerra que terão sido cometidos.
A fome como “arma de guerra”
O acesso da Cruz Vermelha e do Alto Comissariado da ONU para os
Refugiados (UNHCR) à região tem sido muito limitado, pelo que não é
possível chegar à maioria daqueles que precisam de ajuda.
O activista eritreu pelos direitos humanos Paulos Tesfagiorgis considera, em declarações à BBC, que o Governo está a usar a fome como uma arma de guerra.
“Os soldados do Governo queimaram as colheitas dos Tigrayans; a
ofensiva aconteceu durante a época da colheita, e mataram as suas
cabeças de gado”, denuncia, frisando que enquanto isso foi imposto “um
bloqueio total em Tigray”.
“Não havia comida a chegar lá”, nota ainda, salientando que “as pessoas já estão a morrer de fome” numa guerra que é “travada sem compaixão”.
“Para enfraquecer a TPLF, o governo de Abiy tem que subjugar os
civis, incluindo submetê-los à fome”, acusa ainda Paulos Tesfagiorgis.
“Eles matam quem quer que encontrem”
O blogue FoRB in Full conclui que aquilo que está a acontecer em
Tigray, com “massacres, fome e destruição gratuita”, é uma tentativa de
“privar a região de todos os meios de sobrevivência e recuperação”.
Esta publicação apela à comunidade internacional para agir para
“salvar a região”, relatando “bombardeamentos indiscriminados” e assassinatos de crianças e jovens, além de saques de casas, empresas e locais históricos,
como o mosteiro do Século VI na montanha Debre Damo e a mesquita Al
Nejashi na cidade de Shire, uma das mais antigas de África.
Cerca de 750 pessoas terão sido assassinadas por
forças da Etiópia e pela milícia aliada Amhara na Igreja Maryam Zion em
Axum, que se acredita abrigar a bíblica Arca da Aliança.
“Eles matam quem quer que encontrem em qualquer aldeia onde entrem”, denuncia um depoimento citado pelo blogue.
A publicação também fala de “violência sexual e de género em grande escala“, referindo que os homens estão a ser obrigados a escolherem entre a morte ou violar mulheres da sua família.
A tragédia humanitária está também a afectar os cerca de 100 mil eritreus que vivem em campos de refugiados em Tigray, para onde fugiram ao Governo repressivo do seu país.
Alguns refugiados estarão a ser executados e, pelo menos, 6 mil deles
terão sido levados à força de volta à Eritreia ou obrigados a
regressarem a pé.
Um campo de refugiados terá sido destruído e outras infraestruturas
estarão a ser alvo de ataques de grupos armados que roubam os poucos
bens das pessoas.
Os soldados da Eritreia, que também ocupam a zona, são acusados de roubarem civis, tirando-lhes dinheiro e jóias, mas também de saquearem as suas casas para tirarem até cobertores, roupas e sapatos.
Ora, como se o cenário não fosse suficientemente grave, a pandemia de covid-19 está a agravar ainda mais as coisas.
Com os deslocamentos em massa de pessoas teme-se que a propagação do vírus aumente consideravelmente.
Além disso, a Eritreia vive uma situação de fome severa devido a um confinamento restrito que está em vigor desde Março de 2020.
Um barril de pólvora pronto a explodir
A comunidade internacional tem apelado a conversações de paz e à
necessidade de deixar entrar a ajuda humanitária na região de forma
urgente.
O Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, já manifestou “a
preocupação quanto à crise em Tigray” ao primeiro-ministro da Etiópia,
Abiy Ahmed, apelando a que seja permitido “o acesso humanitário seguro e desimpedido para evitar mais perdas de vidas”.
“Apesar dos desafios actuais, os EUA estão prontos para apoiar
reformas e eleições pacíficas”, salientou ainda Blinken numa publicação
no Twitter.
Na resposta, Abiy Ahmed agradeceu o “compromisso [dos EUA] em apoiar
as profundas reformas na Etiópia”, prometendo que vai prosseguir esse
caminho sem se deixar travar pelos obstáculos.
“As nossas aspirações para democratizar e construir
um país multimensional próspero e pacífico para todos serão reforçadas
através do fortalecimento das relações Etiópia-EUA”, vincou ainda.
Contudo, apesar desta declaração de boas intenções, Abiy Ahmed é
visto como um dos culpados pelo clima de guerra civil que se vive na
região.
O blogue FoRB in Full refere que a guerra em Tigray resulta de “uma vingança” do presidente da Eritreia, Isais Afewerki, contra o TPLF, contando para isso com a ajuda dos líderes da Etiópia e da Somália.
A publicação acusa Abiy Ahmed de ter “uma antipatia” pela liderança Tigray e de ter a “ambição de centralizar o poder” com este conflito.
Segundo o mesmo blogue, nesta altura, “a Eritreia está,
efectivamente, a administrar a região” numa guerra que conta também com a
intervenção do exército da Somália, além de uma milícia armada de etnia Amhara.
Os Amhara, povo da região de Amara no norte da Etiópia, são uma das várias etnias que compõem a nação etíope. E são as tensões étnicas, mas também religiosas, que ajudam a explicar este conflito.
Certo é que a crise em Tigray perturba a própria estabilidade da África Oriental numa área geográfica que é um verdadeiro barril de pólvora.
Enquanto a Eritreia é acusada de perseguir os Cristãos Evangélicos do país, a Somália tem um problema com os terroristas Al Shabaab e há um conflito por território na fronteira entre a Etiópia e o Sudão.
O Sudão e o Egipto também têm velhas contendas, enquanto se registam disputas entre soldados etíopes e eritreus.
Entre as diferenças étnicas, religiosas, políticas e económicas, ninguém pode prever para onde é que esta crise vai evoluir.
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