O Afeganistão vive tempos de dúvida e muito medo, com a situação financeira a complicar-se. O sistema bancário do país está à beira do colapso e a guerra interna no topo da hierarquia dos talibãs só acrescenta problemas. Enquanto isso, a influência dos país vizinhos é questionada e pode ser decisiva.
O sistema bancário do Afeganistão está à beira do colapso. O alerta é do director-executivo do Banco Islâmico do Afeganistão, um dos maiores do país.
“Há grandes levantamentos a acontecerem”, salienta Syed Moosa Kaleem Al-Falahi em declarações à BBC. “Só estão a acontecer levantamentos, a maioria dos bancos não está a funcionar e não fornece todos os serviços”, refere ainda.
A economia do país já estava em crise antes da tomada de poder por parte dos talibãs, dependendo muito da ajuda internacional. Mas, agora, com a instabilidade política e social e com o congelamento de fundos, após o triunfo dos talibãs, a situação complicou-se ainda mais.
Os EUA congelaram 10 mil milhões de dólares de reservas do Banco Central do Afeganistão, pressionando o país por causa dos direitos humanos, em especial das mulheres e das etnias minoritárias.
O Afeganistão tem também barrado o acesso a fundos do FMI (Fundo Monetário Internacional) e do Banco Mundial.
A ONU já veio avisar que o país precisa de aceder a essa ajuda internacional para evitar “uma crise económica severa”.
China e Rússia como tábuas de salvação
Enquanto isso, os talibãs estão a virar-se para “a China e a Rússia”, em busca de financiamento, segundo nota à BBC o director-executivo do Banco Islâmico do Afeganistão.
A China está particularmente interessada na reconstrução do Afeganistão e já cedeu ao país milhões de dólares em alimentos e vacinas contra a covid-19.
Mas com a inflação a disparar, a moeda do país em queda e muitas pessoas a perderam os seus empregos, a questão humanitária começa a ganhar força.
O Programa Mundial Alimentar das Nações Unidas já alertou que apenas 5% das famílias têm comida suficiente todos os dias.
Talibãs divididos entre políticos e militares
Como se tudo isso não bastasse, surgem muitas dúvidas quanto ao poder instalado no país.
Os rumores sobre divisões internas nos talibãs continuam depois do desaparecimento de Mullah Abdul Ghani Baradar, co-fundador dos talibãs e que chegou a ser apontado como primeiro-ministro, tendo depois passado a vice-primeiro-ministro do Governo que foi anunciado como “temporário”.
Baradar já voltou a aparecer em público após se ter especulado que teria sido morto numa discussão com um líder militar dos talibãs por causa da formação do novo Governo.
A revista britânica The Spectator avança também a possibilidade de ele ter sido feito “refém” e não é certa a sua influência actual no seio do grupo.
Está em causa “uma divisão político-militar”, com os líderes armados do grupo, os que lutaram na frente de batalha, a sentirem que “algo lhes é devido por 20 anos de luta”, como aponta a Al Jazeera.
Assim, Baradar pertence ao lado mais diplomático que é pela moderação para apacificar o povo e a comunidade internacional, tendo, inclusive, defendido mais lugares para as minorias étnicas no Governo e também a manutenção da bandeira com as cores verde, vermelho e preto, a par da bandeira dos talibãs, como reporta o The Spectator.
Mas do outro lado estão os talibãs combatentes que “ainda aguardam os despojos da guerra”, como nota a Al Jazeera.
Contudo, também nas bases do grupo, os combatentes mais rasos estarão a percorrer grandes e pequenas cidades, saqueando os bens das famílias de antigas autoridades do país.
Pelo meio há receios de que estes anseios pessoais levem a um clima de terror, onde ninguém estará a salvo.
Quem manda mesmo no Afeganistão?
No meio de toda esta situação delicada, é preciso entender também qual é o papel que os vizinhos Paquistão e Irão estão a ter na actual realidade do Afeganistão, e no seu futuro.
Os dois países têm sido acusados, pela comunidade internacional, de apoiar os talibãs e as suas acções terroristas.
A The Spectator assegura que o Paquistão influenciou a formação do novo Governo, garantindo que “as posições-chave fossem para os leais” ao país, sobretudo da temível rede Haqqani, onde se integram os combatentes mais temíveis dos talibãs, e assegurando que os mais diplomatas que negociaram a saída dos EUA “fossem rebaixados”.
A rede Haqqani é liderada por Sirajuddin Haqqani, cuja cabeça os EUA têm a prémio, como um dos terroristas mais procurados do mundo. A discussão de Baradar terá sido com ele.
A The Spectator nota que, na formação do novo Governo talibã, Baradar foi o grande derrotado, o que indicia que venceu a ala mais militarista do grupo.
Entretanto, ninguém sabe do paradeiro do grande líder militar dos talibãs, Haibatullah Akhunzada, surgindo rumores de que pode estar morto.
Este vazio de liderança está a alimentar as divisões internas e ninguém sabe como tudo isto vai acabar.
Além disso, questiona-se quem manda verdadeiramente no Afeganistão nesta altura.
Mas parece evidente que o Governo dos talibãs será uma espécie de “marioneta” da verdadeira fonte de poder, “uma shura secreta”, ou seja, um “corpo consultivo” localizado em Kandahar, onde estarão “os verdadeiros tomadores de decisão”, segundo destaca a Al Jazeera.
Talibãs instrumentalizados pelo Paquistão
Por outro lado, surge a ideia de que os talibãs poderão ser “meros fantoches” das autoridades paquistanesas, até porque o Paquistão teve um papel decisivo na tomada de poder no Afeganistão.
O antigo vice-presidente do Afeganistão, Amrullah Saleh, já defendeu que os talibãs são instrumentalizados pelos serviços secretos do Paquistão, conhecidos como ISI.
A facção militarista dos talibãs “está profundamente incorporada no aparato de segurança do Paquistão”, segundo a The Spectator que explica que o seu aparecimento está profundamente associado ao Paquistão e à chamada “Universidade da Jihad” que se localiza precisamente no Paquistão. Muitos dos líderes talibãs foram “formados” nessa “Universidade”.
A grande dúvida, agora, é perceber “como o Paquistão administrará o seu novo poder no Afeganistão”, constata The Spectator. Era um poder que procurava “desde a invasão soviética, há mais de 40 anos, mas, como um cão a perseguir um carro, parecem incertos sobre o que fazer agora que o tomaram”, acrescenta a publicação.
Em termos geopolíticos, o controlo do Governo do Afeganistão permite ao Paquistão ganhar “profundidade estratégica” na região, e, portanto, ganhar força na eterna disputa com a Índia, como refere o analista de política internacional Zia Pacha Khan, um afegão-americano, num artigo divulgado pela agência de notícias online do Afeganistão, The Khaama Press.
Uma “guerra em grande escala”?
O Paquistão tem tido um “papel duplo”, apoiando os esforços americanos no Afeganistão, mas também ajudando os talibãs que têm “santuários e portos seguros” naquele país, onde têm também acesso a “propaganda maciça, financiamento e apoio ao recrutamento”, como destaca Zia Pacha Khan.
Mas, neste jogo de interesses, os ânimos entre Afeganistão e Paquistão podem agravar-se, nomeadamente se os sentimentos anti-Paquistão crescerem entre uma população afegã movida pela emoção do nacionalismo.
Assim, pode estar em ebulição uma “guerra em grande escala” que será “uma catástrofe para a região”, mas que também terá “um grande impacto internacional com o potencial de arrastar os EUA e a NATO”, ou não fosse o Paquistão uma potência nuclear, como analisa Zia Pacha Khan.
Uma potencial guerra com o vizinho poderia ser um factor de união entre os talibãs divididos e as diferentes etnias do Afeganistão.
Por outro lado, apesar do seu poderio militar, o Paquistão está ciente de que os afegãos podem “prejudicar” a sua “ambição” em termos de estratégia económica na região.
Portanto, Paquistão e Afeganistão podem “destruir-se mutuamente”, afiança ainda Zia Pacha Khan, concluindo que a aliança é o melhor caminho para os dois países e para a região – e evidentemente também para o mundo.
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