Cinco anos depois da violenta revolta que tirou do poder o ex-líder
líbio Muammar Khadafi, combatentes do grupo extremista autointitulado
Estado Islâmico (EI) estabeleceram uma base na cidade de Sirte, na costa
do país.
Com cerca de 1,5 mil soldados no local, segundo
estimativas, a milícia começou a impor suas leis por ali, incluindo
regras de vestuário para homens e mulheres, segregação nas escolas e o
estabelecimento de uma polícia religiosa.
As punições para crimes
que vão de roubo e produção de bebidas alcoólicas até “espionagem”
incluem prisão, amputações, crucificações públicas e decapitações. O
grupo ainda criou sua própria “força policial”, que faz buscas nas casas
e força as pessoas a frequentarem aulas de reeducação islâmica.
O
chefe da inteligência do governo líbio na vizinha Misrata, Ismail
Shukri, afirma que a maioria dos combatentes do EI em Sirte é de
estrangeiros – vindos principalmente da Tunísia, do Iraque e da Síria.
O
acesso à cidade é perigoso para jornalistas, e o contato com as pessoas
que moram lá é limitado – geralmente por medo de retaliações.
A BBC conversou com ex-moradores que foram forçados a deixar a cidade para escapar do Estado Islâmico. Confira os relatos:
Depoimento 1: Bint Elferagani, médico
Eu
trabalhava como pediatra no Hospital Ibn Sina. Agora, estou em Trípoli
(capital da Líbia), para onde escapei com minha família em agosto de
2015, quando os conflitos estavam começando.
Mas, como todos os
outros, ainda tenho parentes morando em Sirte. Nós às vezes entramos em
contato com eles pela internet, por meio de uma conexão via satélite. Em
geral, lá não há mais acesso à rede ou a linhas telefônicas.
Aqueles
que continuam na cidade tendem a ser aqueles com menos condições
financeiras, que não podem pagar aluguel em outros lugares. Têm chegado
até nós notícias de que estão faltando remédios nos hospitais. Quem
corre risco de morte, e tem como sair de lá, está fazendo isso.
A
matança é inacreditável. Eu perdi quatro primos do lado paterno da
família, cinco do lado materno, outros três parentes e dois vizinhos.
Um
primo foi crucificado na rotatória Zaafran, outro na rotatória
Gharbiyat e um terceiro foi decapitado. O quarto foi morto por um tanque
de mísseis.
Líbio mostra no celular imagem de seu irmão, que teria sido morto a tiros e crucificado pelo EI Foto: BBC / BBCBrasil.com
Uma
amiga perdeu três de seus irmãos mais novos. Ela se instalou em Zliten
(outra cidade da costa da Líbia) recentemente. A situação é trágica: seu
irmão foi morto em um ataque suicida em 7 de janeiro. Ele estava
prestes a se formar na escola militar. Um momento de felicidade que se
transformou em luto.
Eu culpo os países da região pelo Estado
Islâmico. Odeio ouvir o nome de alguns deles agora: Egito, Tunísia,
Catar, Argélia, Sudão, Afeganistão, Síria. Nós, líbios, teríamos
resolvido os nossos problemas nós mesmos se eles tivessem nos deixado
sozinhos.
Há líbios entre eles (EI), como os jihadistas das cidades
de Benghazi e Derna. A Líbia é um lugar pequeno, todos conhecemos uns
aos outros.
Meu pai é um policial veterano e estava sendo ameaçado
em Sirte. Todos que trabalham na polícia podem ser sequestrados ou
mortos se não se juntarem a eles.
As forças do Estado Islâmico se
concentram no meio da cidade. Um amigo me disse que eles tomaram nossa
casa vazia, assim como fizeram com os principais prédios do governo, o
hospital onde eu trabalhava, a mesquita local e a universidade.
Centro construído para sediar cúpula pan-africana é usado para aulas de "reeducação" islâmica Foto:
Divulgação/BBC Brasil / BBCBrasil.com
Depoimento 2: Al-Warfali, ex-morador de Sirte
Os
soldados do Estado Islâmico tomaram a cidade em fevereiro de 2015. Mas
não se tratou de uma invasão em si, e sim de uma combinação de
acontecimentos: combatentes jihadistas locais (da milícia Ansar
Al-Sharia) declararam aliança ao EI e depois receberam os reforço de
homens que fugiram das forças do general Khalifa Haftar em Benghazi.
Há
pessoas de outras nacionalidades nas fileiras do Estado Islâmico.
Notamos isso pelo sotaque e pela aparência deles. Há tunisianos e
egípcios. Não são apenas árabes. Em abril de 2015 houve um desfile
especial de boas-vindas para pessoas que eles disseram ser combatentes
do Boko Haram, vindos da Nigéria.
No início, o EI não estava muito
focado em implementar sua severa interpretação da Sharia, a lei
islâmica. A sensação era a de que eles estavam mais preocupados em
conquistar a fidelidade e a obediência da sociedade tribal de Sirte.
Apenas
em agosto as regras de vestuário e comportamento começaram a ser
implementadas de forma mais perceptível. Foi quando também tiveram
início as crucificações e os chicoteamentos de pessoas condenadas, que
ocorrem geralmente após as orações de sexta-feira.
Até dezembro,
quando saí de lá com minha família, entrar e sair da cidade era algo
rotineiro. As únicas pessoas que tinham problemas para ir e vir eram
aquelas associadas a outros grupos de combatentes ou suspeitas de serem
“espiãs”.
A maioria dos alimentos e produtos vendidos nas lojas
estão levemente mais caros. Gasolina, não há um ano e meio. As pessoas
que ainda recebem de Trípoli seus salários do serviço público escolhem
ficar. Sair de lá simplesmente não faz sentido economicamente para a
maioria da população.
Carta entregue pelo EI a servidores públicos com convocação para cursos Foto: Divulgação/BBC Brasil / BBCBrasil.com
Cursos de 'reeducação'
Folhetos
e cartas têm sido distribuídos para lojistas e servidores públicos,
convidando-os para cursos de “reeducação” ministrados pelo Estado
Islâmico.
Eles são realizados no Ougadougou Conference Centre,
suntuoso prédio com paredes de mármore construido por Khadafi para
sediar cúpulas pan-africanas.
Nos cursos ali ministrados, os
integrantes do EI instruem empregados sobre a importância de aderir à
sua versão da lei islâmica.
As cartas alertam: “Quem não comparecer estará passível de questionamento.”
Depoimento 3: Ibrahim, autônomo
Eu
sou de Sirte, onde trabalhava como autônomo. Deixei a cidade com minha
família em 17 de julho do ano passado, algum tempo após a chegada do
Estado Islâmico. Agora, vivemos em Misrata.
Estou, é claro, preocupado com minha família. Nós ainda temos parentes e amigos na cidade.
Quando
escapamos, eles deixavam as pessoas irem e virem conforme queriam. Ouço
de amigos que elas ainda podem sair caso queiram.
Também temos
escutado que praticamente não existem remédios nos hospitais. Há comida
disponível, mas por meio de “aproveitadores da guerra”. Pelo que
sabemos, não há gasolina.
O EI deve ter tomado Sirte com a ajuda dos
militantes pró-Khadafi, que inicialmente chegaram lá com o pretexto de
expulsar soldados de Misrata. Não há como esses combatentes estrangeiros
conhecerem as entranhas da cidade sem a ajuda de locais.
Eles
começaram a crucificar pessoas na entrada da cidade dois meses após
tomá-la. Seu “crime” era serem espiões do Líbia Dawn (grupo islâmico
rival).
Eu, pessoalmente, vi ao menos uma pessoa sendo crucificada.
Depois, ouvi e li sobre outras 17, entre elas meu amigo Sharaf Aldeen e
seu irmão sheik Meftah Abu Sittah (clérigo salafista). Ambos estavam
mortos quando foram crucificados.
Foto: Divulgação/BBC Brasil / BBCBrasil.com
A Sharia em Sirte
Quadros
de aviso orientando as mulheres sobre como se vestir de acordo com a
Sharia foram espalhados por Sirte em julho do ano passado. O cartaz da
foto acima diz:
Instruções sobre como vestir o hijab de acordo com a Sharia
Deve ser fechado e não revelar nada
Deve ser folgado (não apertado)
Deve cobrir todo o corpo
Não deve ser atraente
Não deve lembrar as roupas de infiéis ou homens
Não deve ser ornamentado e chamar a atenção
Não deve ser perfumado
Foto: Divulgação/BBC Brasil / BBCBrasil.co
Depoimento 4: Khaled, funcionário de instalação petrolífera
Sou
de Ras Lanuf e fiz faculdade em Sirte. Estou agora em Sidra (a 174 km
dali), onde trabalho e cujo terminal petrolífero o EI está tentando
tomar. Por enquanto, o Petroleum Facilities Guards (“Protetores de
instalações de petróleo”, em tradução livre, grupo descrito como
paramilitar) tem evitado seus avanços.
A última grande tentativa
ocorreu em 4 de janeiro. Eles explodiram um carro-bomba do lado de fora
do portão onde os guardas estavam posicionados. Ao menos sete guardas e
vários integrantes do Estado Islâmico morreram.
O EI passou por nós
em Sidra, durante seu caminho até Ras Lanuf, que fica a 15 km de
distância. Eles tomaram uma área militar entre Ras Lanuf e a zona
industrial.
Os ataques nunca pararam. Eles sabem que eles não têm
recursos para tomar o terminal de petróleo. Então, estão lançando mão da
tática de “bater e correr”, o que inclui atear fogo em contêineres com
combustível. O ataque ocorreu no último sábado (30 de janeiro).
Não
estamos em um estado total de guerra, mas também não vivemos em paz
completa. As pessoas estão tentando manter, até onde é possível, uma
vida normal. Isso explica porque as escolas já foram reabertas após
terem sido fechadas no início de janeiro.
Estive em Sirte no fim de dezembro, ainda tenho amigos lá. A comunicação é difícil porque as linhas têm sido cortadas.
Aqueles
que partiram saíram pelo leste da cidade, a caminho de Misrata. A rota
está aberta e é segura por ali. Na parte leste, no sentido do terminal
de petróleo de Sidra, por exemplo, é perigoso porque ainda há
confrontos. Fiquei sabendo que combatentes locais, de Ras Lanuf, estão
preparando um contra-ataque em Sirte.
O Estado Islâmico na Líbia
A
Líbia se viu envolta em caos após forças apoiadas pela Otan derrubarem
Khadafi, líder que comandava o país havia décadas, em 2011.
Eleições
foram realizadas em 2014, mas aqueles que detinham o poder em Trípoli
se recusaram a abrir mão dele. Uma facção rival montou seu próprio
parlamento em outro lugar e grupos armados têm lutado pelo controle das
cidades e do que resta da infraestrutura do país.
O Estado Islâmico,
segundo estimativas, não tem mais do que 2 mil ou 3 mil combatentes no
país, segundo um relatório das Nações Unidas publicado em dezembro de
2015. Seus soldados estão divididos principalmente entre Derna e Sirte –
cerca de 1,5 mil deles na última cidade. Eles tomaram controle de uma
estação de rádio estatal, pela qual transmitem discursos de seus líderes
religiosos.
O chefe da inteligência em Misrata, Ismail Shukri,
afirma que a maioria dos combatentes do EI são estrangeiros vindos da
Tunísia, mas que figuras importantes do grupo, vindas do Iraque e da
Síria, também buscaram refúgio na Líbia.
Acredita-se que o número de
integrantes do Estado Islâmico na capital, Trípoli, seja pequeno –
Seriam apenas entre 12 e 24 pessoas atuando em uma célula na cidade,
segundo relatos. Entretanto, eles têm sido capazes de fazer sérios
ataques, como o ocorrido no Hotel Corinthia, em janeiro, que deixou oito
mortos, e a invasão de uma prisão localizada dentro da base aérea de
Mitiga, em Trípoli, em setembro.
Militantes do EI estão tentando
avançar para o leste, a partir de Sirte, e têm realizado uma série de
ataques em instalações de petróleo em Sidra e Ras Lanuf desde o início
de janeiro.
Algumas
das imagens usadas nesta reportagem, mostrando a rotina em Sirte, foram
inicialmente publicadas nas redes sociais por uma pessoa ligada ao
Estado Islâmico. Embora as imagens correspondam aos relatos fornecidos
por moradores da cidade, sua autenticidade não pode ser verificada.
Fonte: http://www.ultimosacontecimentos.com.br/guerras/amputacoes-crucificacoes-e-degolamentos-a-vida-sob-o-ei.html